quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Especial do dia.

Ela está chegando, ele pode sentir.

O carro estaciona; o sinal que precisava. Agora tudo se transforma. Não importa se o que segura se transforma em serpentina quando é lançado contra a parede; não importa se a cada pisada uma nuvem colorida se eleva; não importa se o descer da escada é acompanhado por um show de luzes decorrente de fogos semelhantes a vulcões ativos ficados em ambos os lados; ela estava chegando e tudo acabaria maravilhosamente bem.

O encontro aguardado é enfim concretizado. Os olhos suplicantes antecedem o pedido:

"Mãe, o que vamos jantar?"

E na resposta, um mistério:

"Ora, você sabe bem. O que mães atarefadas, mas que se preocupam com os seus filhos, fazem".

À mesa, cinco minutos após a mãe ter chegado, o prato fumegante era servido.

"Pô, mãe! Macarrão instantâneo de novo?!"



terça-feira, 28 de outubro de 2014

Ao vivo.

Numa tela dividida, o âncora do telejornal fala:

"Enquanto isso, em Porto Alegre, acompanhamos a repercussão que a revelação tem causado por lá. É com você, Anna Filomena".

Compartilhando a mesma tela, a repórter aguarda a informação chegar balançando a cabeça numa afirmativa, contudo, aparentemente, como a resposta demorava mais que o normal, o âncora, com a expressão num misto de seriedade e vergonha, chama a repórter, questionando-a sobre a comunicação, mas, ao contrário do que aguardava, ela falou:

"Estou ouvindo bem, Silas".

O âncora não entendeu o porquê dela não responder e verbalizou isso.

"Meu nome é Margareth", respondeu ela.



segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Mensagem de fumaça.



Lá estava o idiota admirando o seu estúpido trabalho.

Uma imensa árvore fora posta abaixo. Razão? Ainda busco uma. Alguém justifica com: ventos balançam-na e, ameaçadora, ela baila. A iminência de sua queda deu-lhe a sentença. Antes que ela tombasse e trouxesse a morte, precavemo-nos. E assim ela foi podada. Pouco a pouco seu caule foi reduzido. Grossos tocos rodeavam o que restara de uma portentosa árvore. Mas o serviço não estava completo. O idiota não poderia viver com a recordação majestosa da natureza. Ele precisava eliminar qualquer resquício de que um dia existiu ali o verde em sua mais soberba forma. Os bombeiros selavam o destino dela com suas agoniantes motosserras. Do que sobrara, não poderiam fazer mais nada. Sugestão do profissional? Fogo. E de um conselho imbecil o idiota resolveu acatar.

Hoje, quando pode, ele reúne tralhas no toco oco enegrecido e incendeia, em sua desesperada ânsia, os restos mortais do que um dia fora uma portentosa amendoeira.


terça-feira, 22 de julho de 2014

Desentendimentos.


Todos olham para o céu. Era impossível ignorar o mensageiro da morte que se avizinhava. Um míssil fazia um arco aberto, deixando atrás de si um rastro de fumaça esbranquiçada. O silvo agigantava seu assobio de iminente catástrofe. Ninguém corria. Era chegada a hora e os habitantes da maior cidade do mundo sabiam que era inútil desesperar-se. Simplesmente acompanharam a trajetória até a colisão. Os que estavam longe do epicentro depararam-se com um baque surdo seguido de uma enorme redoma clara que alargava vertiginosamente seu diâmetro, consumindo tudo ao seu redor. Milhares desintegraram-se. Milhares transformaram-se em deformidades e ao restante só restava chorar.

As notícias televisionadas trazem anseios. O medo da morte prolifera-se e muitos, fracos de espírito, cessam a vida. Quem ainda vê um futuro, procura um meio de salvar-se. Os que anteviram a hecatombe, abrigam-se. Os causadores, acovardam-se e se escondem.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Um breve despertar (A batalha).

Acorda!

O corpo estremece, que de bruços beija o gramado viciado do sangue derramado. O metal da armadura pesa, e comprime a pele. O frio machuca os ferimentos, que abertos teimam em sangrar. É preciso levantar para não ter o mesmo destino das centenas que, ao redor, formam o cenário macabro de uma guerra sem vitoriosos.

Não há gemidos, tão pouco, apelos.

A espada partira e o escudo sumira. Onde se apoiaria? Os músculos, enrijecidos, deviam encontrar forças ocultas; sobrepor a cãibra e ignorar a dor dos cortes. É suplicante o levantar. Lágrimas inundam a face imunda; o cabelo úmido cola na testa. Os dentes se chocam e os olhos se fecham, mas o moribundo no fim está erguido.

A cada respirar, uma pontada nas costelas. Corpos esfacelados até onde a vista alcança.

Uma fagulha de arrependimento num movimento débil de cruz e a surpresa de uma seta transpassada, e de sua ponta a gotejar o líquido rubro que escapa de seu peito. Ainda dá para virar e ver o menino, arquejante, desfazendo a posição de ataque.

Falta ar. A vista embaça. O abraço da morte se fecha.

Dorme...