segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Acordando em situações inóspitas (2): o interrogatório.


Imagem extraída do site: http://www.observatoriodeseguranca.org/imprensa/tortura




Um ardor me desperta. Sinto gosto de sangue na boca e meu olho direito está inchado.

Apenas um relance me separou da inconsciência prazerosa para a realidade dolorosa. Estou sentado, completamente nu, atado a uma cadeira de metal num local imundo e obscuro. Aos poucos, inúmeras sensações percorrem-me: o frio que sobe por minha perna acusa a presença de uma bacia com água onde os meus pés estão submergidos; as cordas bem enlaçadas ferem meus braços e pernas, além de provocarem ardência e comichão.

Uma pequena janela gradeada no alto, cujos raios solares revelavam uma fina camada de poeira flutuando no ar, dava pistas da hora em que se passa minha atual posição de sufoco.

Novamente, não sei qual o meu objetivo ali e não faço ideia do porquê de estar apanhando. Dois homens à minha frente resmungam numa língua que me é alheia, mas pela quantidade de emes e eles, dou um palpite de que é árabe. Também não era difícil perceber pela vestimenta e etnia, contudo, esse detalhe óbvio só me foi apresentado após forçar muito a minha vista mareada.

Então... parece que estou sendo interrogado no final da contas.

Suponho que agora seja um militar (ou apenas um civil azarado). Pela tonalidade da pele, um norte-americano, talvez? O espancamento já deve estar acontecendo há horas. Não sinto boa parte do corpo e a outra parte ou formiga ou a cãibra impera.

Não compreendo por que isso vem acontecendo comigo. De um fechar e abrir de olhos mudo de naturalidade e situação. Um pavor incontrolável toma conta de mim todas as vezes que sinto a consciência emergindo das profundezas do sono sem sonhos.

Outro tapa dado com as costas da mão cheia de anéis arranca pele, lágrimas e mais sangue. Meu interrogador pragueja em seu idioma, pela expressão mostra que sua paciência se esgotara. Tento amenizar sua ira balançando a cabeça numa negativa suplicante, contudo, um soco no meio do estômago demonstra meu erro.

O fôlego custa voltar. Enquanto isso, o homem se afasta e retoma o diálogo com o outro, que fica apenas me encarando com a mão no queixo barbudo e esporadicamente respondia o companheiro.

Após um tempo de grunhidos, parecia que haviam chegado a uma solução.

Com um aceno, o homem que me fitava chamou outros dois companheiros que estavam atrás de mim. Eles usaram de força desproporcional para me tirarem dali. Ao ser arrastado para fora daquele lugar macabro percebo uma mesa coberta de apetrechos de tortura, inclusive fios desencapados conectados a um gerador portátil. O homem, que parecia ser o líder, se dirige à minha pessoa, num sotaque carregado, antes que eu atingisse o corredor:

Você terá melhor serventia como exemplo”.

Assim, sou arrastado por um corredor de paredes deterioradas. No chão de areia, o rastro dos meus dedos representava minha impotência.

Numa sala contígua, trapos são jogados em cima de meu corpo, prostrado no chão. Contudo, não tenho forças para me vestir.

Depois de alguns minutos ali, imóvel e perdido em pensamentos apreensivos, assusto-me com a entrada brusca dos mesmos guardas que haviam me levado para aquela sala. Com brutalidade, ajudaram-me a colocar a roupa como se eu fosse um boneco de pano. Em seguida, retiraram-me, agora me deixando num lugar com câmeras de vídeo. Deus... eu ia ser sacrificado!

Naquele instante, o desespero tomou conta de mim. A inevitável aproximação da morte fez-me resgatar forças adormecidas.

Por não esperarem qualquer reação, os meus carcereiros não se preocuparam em novamente me atar. Confiando simplesmente em suas forças, com surpresa (beirando à pena de tão patético), um deles se desequilibrou quando arranquei a metralhadora do outro e disparei a esmo em todas as direções. Infelizmente muitos dos disparos encontraram apenas a parede.

Mesmo com dificuldade, me esgueirei para fora da sala. Estacionei sentado no meio do corredor, esperando novos inimigos para atingir. Meu peito ardia com o esforço. A vista gradativamente escurecia, porém, eu não podia desperdiçar aquela chance. Mas eu estava tão cansado...

Ao acordar, novamente com um tapa, me deparei com a cruel realidade.

Certificando-se de que estava enfim desperto, o operador da câmera deu sinal para que o discurso fanático começasse. Cinco homens, como estátuas encapuzadas, pairavam ao meu redor. Um deles, mais à frente, lia o temível ultimato.

Minhas tentativas de manifestar-me foram sufocadas pelo trapo na boca. Agitei-me quando percebi a aproximação imponente do meu carrasco. Em sua mão, uma faca reluzente levemente encurvada. Meus gemidos aceleraram enquanto as lágrimas caíam frenéticas.

O metal gelado fez movimento de vai-e-vem e a dor que ela provocava no contato de minha garganta se confundia com o sufocamento gerado em decorrência do ato.

Por fim, vi apenas luzes quadráticas levitando à minha frente e em seu centro, uma pequena vermelha piscando.


Recife, 19 de agosto de 2012.