quarta-feira, 13 de junho de 2012

Acordando em situações inóspitas (1): a escalada.



Sinto uma dormência por todo o corpo, mas uma pressão desconfortável circunda meu tórax. Antes que possa abrir meus olhos, percebo que estou pendurado. O frio gélido queima a parte do meu rosto que está descoberto. Trajo uma felpuda vestimenta de alpinismo e a corda à minha frente executa uma dança vibratória de tensão. 

Tenho a péssima ideia de fitar o abismo abaixo de mim. Recolho-me em minha insignificância e aperto ambas as mãos na corda salvadora, desesperadamente tentando apoiar os pés na costa íngreme. Acima, consigo discernir duas ou três pessoas que, diferentes de mim, sabem o que estão fazendo neste lugar e, pelas suas expressões consternadas, torciam para que eu não derrubasse a todos. 

Assim que pude me tranquilizar, um deles chama um nome. Eu não o reconheço, pois "Michael" nada significa para mim. Contudo, era o meu nome. Eu tento dizer a ele que não sou quem ele pensa, que não sabia por que raios eu estava naquela situação e que nada sabia sobre alpinismo. Pelo seu rosto, dava para perceber que ele não entendera absolutamente nada do que eu dissera. Também, uma ventania castigava-nos, dificultando a comunicação. Disso, respiro fundo e aguardo eles me indicarem uma solução para o problema. Com a adrenalina a mil, tento manter a atenção neles, nos movimentos deles. 

"Não há razão para desespero", tentava me convencer, sem sucesso. Como alguém poderia manter a calma na calamitosa vicissitude daquele instante? Entretanto, ainda assim, eu procurei ocupar minha mente com as inúmeras imperfeições rochosas: seus sulcos, suas protuberâncias, sua majestosa presença. Tentei lembrar-me de mim; desvendar os mistérios que me fizeram cair aqui. Eu sabia que não era Michael, mas eu não me lembrava de quem eu realmente era. Surgi carregado de informações, menos o que mais importava: eu! Só restava agora sair daqui. 

Minha apatia deixou os outros integrantes da expedição nervosos. Eles gritaram, questionando-se o porquê da minha imobilidade. Para eles, eu deveria saber o que era necessário para que prosseguíssemos com segurança. E em vão tentei explicá-los que eu não sabia. 

Então, o destino quisera dar um basta naquilo. A poucos metros acima de mim, a corda, talvez devido à fricção com a saliência afiada do pico ou a qualquer fato alheio a mim, entrou em processo de desestruturação; serrilhando vagarosamente à princípio, ela foi se desgastando célere à medida que as delgadas camadas iam perdendo a consistência e, como uma planta crescendo, foi se ramificando, deixando poucas cordas internas ligarem-se ao arranjo original. Cada estalo era seguido de um balançar nervoso. Sentia febre apesar do frio. Meu coração estava disparado. Seria o meu fim? 

O mundo, de súbito, aquietou-se, premeditando o acontecimento. Ao meu redor, as coisas de repente pareciam seguir em câmera lenta. Por fim, senti a gravidade me puxando. E enquanto sentia a onda gelada recepcionando-me, tentei agarrar-me aos últimos resquícios de vida que me restava, mas a enorme parede ao meu lado não se permitia ser tocada...

Gadinho, o vampiro abestalhado (1): o bar.



A fachada do bar não tinha nada de espantoso: a mesma aparência desgraçada e mal cheirosa como qualquer outra. Porém, este antro de perdição tinha um aspecto em especial. Não, não me refiro a meninas de corpo esbelto e sem celulite. Muito menos a um atendimento de primeira, com direito a copos limpos e um garçom disponível apenas para você que faz acrobacias com motosserras enquanto serve a bebida. NÃO! Eram os clientes, não o bar, que o fazia diferente dos demais.

Fundado juntamente com a cidade, o bar era palco para os poucos frequentadores reunirem-se afim de contar vantagem, confessarem tristezas e descolarem algum par. Ali eram destrinchados segredos movidos a base de álcool; mas se engana quem pensa que se tratava da mesmíssima bebida devoradora de fígado servida nos lugares comuns, aqui, os drinques tinha um leve sabor de sangue.

Pelo menos uma vez na semana, Gadinho ia afogar as mágoas no bar, cujo nome estampado acima da entrada denominava-o simplesmente de "BAR" (pintado de maneira rude e praticamente descolorado).

A porta de entrada era uma bocarra aberta, que era cerrada durante o dia por um enferrujado portão enrugado, preso no chão por um enorme cadeado. Ninguém sabia quem era o verdadeiro dono, apesar de especularem que Olho-Trocado, um sujeito mal encarado, cujos pelos no nariz interligavam-se aos do bigode ensebado, era um possível candidato, simplesmente por estar lá todos os dias atrás do balcão de madeira atendendo, insatisfeito, os velhos clientes.

Poucas mesas eram dispostas estrategicamente rente às paredes (cheias de marcas gordurosas de digitais); de vez em quando, viam-se algumas também expostas do lado de fora.

Gadinho não tinha dia certo para visitar o lugar, mas coincidiu dele aparecer justamente na "quinta espetacular", em que as prostitutas obrigavam seus clientes-alvo a pagar "apenas" duas rodadas de cerveja rubra, sem incluir o programa, que neste dia era 75% do preço de mercado.

Contudo, Gadinho não atentava para promoções, pois ele estava com sede.

Aproximando-se devagar do balcão, sem atrair a atenção para si, ele pede um "olho vermelho" (uma mistura de sangue caprino e bovino com um leve toque de canela). Olho-Trocado fitava dois lugares ao mesmo tempo (e nenhum era para onde Gadinho estava) quando o pedido foi feito, e atendeu-o relutante (dizia-se que o mal humor era charme do possível dono do Bar, sua marca registrada - quem não gostasse que fosse procurar outro lugar, e ele duvidava que você encontrasse).

Gadinho focou no líquido rubro que preenchia o pequeno copo na qual era servido e o sorveu de uma só vez. A sensação de amargor e efervescência que percorreu o sistema digestivo logo deu lugar à leveza quando o efeito atingiu o cérebro. Ele depositava o copinho no balcão quando Olho-Trocado falou:

"Ainda com essa bebida de fresco!"

Gadinho não se sentiu ofendido, pois estava acostumado àquele tratamento. Todos que ele conhecia (até alguns desconhecidos) zoavam dele por não beber sangue humano. Ele já tinha mais de 200 anos e não sentia a necessidade deste tipo específico de bebida, apesar da grande maioria achar necessária a mudança, ainda mais se levar em consideração que ele era um vampiro, e desde o dia em que foi amaldiçoado ele tinha que chupar sangue para poder manter-se vivo, principalmente o humano (que tinha um gosto suave e adocicado, dependendo da vítima).

O "jovem" ignorou, como era de seu feitio, as considerações inoportunas do estrábico barman e pediu mais uma rodada. Entretanto, a relutância pacífica de Olho-Trocado deu lugar a uma inexplicável cólera. O motivo de seu repentino ódio é explicado quando ele fala:

"Chega de tua frescura! Hoje tu vai tomar uma bebida de verdade!"

Todos que estavam ali primeiramente observaram atônitos o comportamento do barman, mas concordaram com a resolução tomada por ele e correram em direção a um amedrontado Gadinho, a fim de segurá-lo.

Pego por diversas pessoas, Gadinho se desespera e tenta desvencilhar-se, mas em vão.

Olho-Trocado enche o copo com "hemoglô", safra de 1974 (cem por cento humana, sem aditivos - ou seja, gorduras – mas com uma leve essência de maconha). Com um sorriso maléfico, de caninos afiados à mostra, ele aproxima-se lentamente de Gadinho que, resignado, relaxa o corpo.

Mas quando tudo parecia perdido, Gadinho recorda-se que é uma merda de um vampiro! E, com esperanças renovadas, ele transforma-se num morcego e consegue fugir sem pagar.

Quando estava distante do perigo, ele pousou no alto de um duplex e voltou à forma original. Com o peito arfando, ele senta na beirada e fala para si: "Essa foi por pouco". E deixa aquele incômodo episódio desvanecer-se de sua mente. Contudo, um pequeno detalhe atinge-lhe a cabeça tal qual uma pedra: onde diabos ele iria beber agora?


Recife, 24 de maio de 2012.