segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O pedido de Deus.


Um ovo ordinário, de casca argêntea, está posicionado num espaço de brancura infinda. Caso algum observador se permitisse indagar o porquê dele estar em pé, se não há nada, pelo menos perceptível, que permita responder à questão; a verdade é que o ovo é a única coisa na qual dá para se tomar como referência de dimensão do lugar. O resto é apenas o puro e impenetrável branco.

Aproximando-se do ovo, pode-se notar uma pequena vibração advinda de si. Posicionando o olhar na sua superfície, vê-se uma fissura que de instante a instante aumenta e se divide. Os proeminentes caminhos desenham na casca formas ditadas pela lei do acaso. Isso sempre acompanhado do estralar surdo de algo quebrando. O ovo, cujo genitor não se avizinha ou mesmo não se sabe se existe, revelava sua cria.

Antes de despedaçar-se por completo, o ovo caí, ficando na horizontal, mostrando de relance detalhes do ser, que força a saída e faz com que seu local de germinação rolasse uns poucos centímetros até parar por completo e desfazer-se de vez.

“Banhado” por pedaços de cascas, que estavam em cima de seu diminuto corpo, a esquálida cobra, ainda um tanto assustada em nascer em lugar tão enigmático, procura uma explicação para o motivo de sua existência. Não que ela soubesse exatamente que pergunta fazer, pois nem isso ela sabia com clareza. Na verdade, somente o fascínio em estar ali, viva, fitando um “nada” branco e depois a si mesma e o resquício do seu nascedouro, já a enchia de júbilo e satisfação.

Mas, e depois? O que fazer após a constatação de sua existência? O que fazer primeiro?

“Coisas de cobra”, responderiam alguns. Contudo, esta criatura frágil e absurdamente lotada de perguntas a serem feitas não era uma mera cobra. Ela era “a” cobra. A primeira de todas. O fato de ter sido desenvolvida neste espaço foi, acreditem, um erro de cálculo calculado.

Ela deveria ter vindo juntamente com as outras criaturas num só momento, pela vontade bendita de Deus, que criara o mundo e preparava-se para o próximo passo: povoá-la. Entretanto, Deus precisava esclarecer alguns detalhes com a recém criada cobra. E isso devia ser particular.

Deus, apesar de seu poder ilimitado e inimaginável, preferiu personificar-se numa forma humanoide; primeiramente, translúcida, mas que logo foi preenchida por a matéria do próprio cosmo.

O pobre animal, cuja significação das coisas ainda lhe era desconhecida, não pode expressar o que via dentro daquele agente estranho à paisagem, assim como ela. Mas aquele estranho prostrado à sua frente, no momento em que aparecera, surgira como uma gradativa forma humanoide que foi se formando do nada, dando o mesmo efeito de ter aberto um buraco no ar alvo com seu negro formato. Dentro dele havia galáxias diminutas, estrelas exalando uma magnífica fosforescência e planetas exuberantes.

Enquanto Deus se aproximou da cobra, esta fitava admirada as constantes mutações que ocorreriam no corpo daquele. A cobra não podia conter um misto de temor e vislumbre.

“Não tenha medo, criatura”, a voz emitida por Deus parecia originada de todos os lugares possíveis. A cobra não sabia para onde dirigir a atenção.

Deus aproximou a sua mão, em cuja palma um sol pulsava, mas parou o movimento. Fitou a cobra – pelo menos era para onde seu rosto formado por infinitas estrelas apontava. Ele sabia que o animal não poderia falar, pelo menos até ele fazer um gesto. Automaticamente, a cobra pigarreou, confusa; e sons breves, para sua própria surpresa, eram libertados de seu interior. E o que era mais importante, ela entendia aquele ser e agora poderia conversar com ele.

“Assim está melhor”, disse Deus.

A cobra tinha muitas perguntas a fazer, mas antes que pudesse balbuciar, foi interrompida.

“Por um momento, peço que me ouça. Talvez responda algumas das suas inúmeras perguntas, mas primeiro deixe-me explicar por que fiz você vir antes de todos”, Deus fez uma pausa para a cobra assimilar aquilo que estava sendo transmitido. Vendo que entendera, ele continuou: “Estou prestes a fazer algo esplendoroso. Um plano ousado. E você fará um papel deveras importante. Talvez pergunte: ‘por que eu e não qualquer outro?’. Afeiçoei-me a sua figura simplesmente, não preciso de motivos. Agora, vou dizer-lhe o que pretendo fazer, por isso ouça-me atenciosamente.”

A cobra dispôs toda a sua energia nas palavras importantes.

“Sou seu criador. Assim como você, muitas outras espécies de animais virão compor um mundo que fiz, e que no momento está vazio de seres andantes. Eu pretendo participar disso, mas o homem que criarei a minha semelhança (ou mais precisamente, eu mesmo personificado), assim como a mulher que virá em seguida, retirada do homem para fazer-lhe companhia, e que não deixa de ser, assim como ele, uma parte de mim, não poderão sair do meu próprio mundo divinizado (estático) e criar, sentir e retornar para mim o processo maravilhoso da mudança, caso não quebrem a corrente. Essa será sua missão.”

A cobra, tímida, falou:

“Como farei isso? E se o senhor é o criador, por que simplesmente não opera da maneira certa, pelo menos da maneira que o senhor quer que aconteça?”

“Eu sou tudo. Sei como tudo é na TOTALIDADE. Não consigo vivenciar partículas. Tenho um plano geral de toda a história do homem neste planeta, mas não o saberia caso não viesse até você e pedisse esse favor.”

“Mas o senhor é meu criador, como pode se dar ao trabalho de pedir? Bastava incutir na minha cabeça tal pensamento e logo o faria sem pestanejar.”

“Ora, cobra. Que graça teria?”

Algo semelhante a um sorriso pareceu surgir em meio às estrelas, deformando-as.


Nota: A cobra soube o que fazer, cumprindo seu papel com êxito. E, além disso, foi o único animal que teve acesso a informações privilegiadas da “fonte”. O resto, como dizem, é história.

Teresina – 25-03-2010.

O Deus que mencionei neste conto se assemelha ao Eternidade, da Marvel Comics.

Nenhum comentário:

Postar um comentário