terça-feira, 15 de novembro de 2011

A cidade.

A música do grupo oitentista Information Society não conseguia segurar as pálpebras de Eustáquio Pamplona, engenheiro com ânimo para a arquitetura. A sua esposa, Odete Silveira Pamplona, ressonava sem se importar com o ritmo da música que, segundo ela, parecia robôs experimentando um teclado eletrônico com problemas de disjunção. Ambos retornavam das férias, planejadas há uma década, no litoral do Estado. Por residirem numa cidade perdida de nome impronunciável do interior, agora cumprem a penosa tarefa de regressarem.

Imagem retirada do site: http://www.photoshoptotal.com.br/papel-de-parede/16505/carro_na_estrada


Mesmo a estrada não estando em condições perfeitas, cheia de buracos e às vezes alternando para trechos cujo asfalto simplesmente inexistia, além do embalo do som com amortecedor, Eustáquio constantemente teimava em ceder à tentação de uma pestana. Afinal, o engenheiro já dirigia há horas. Não seguiu o conselho de sua mulher em parar num hotel de beira de estrada e agora se amaldiçoava, pois, apesar de encurtar o tempo da chegada, via que tinha sido uma decisão insensata dirigir cansado como estava.

No painel multicolorido do veículo ele fitou as horas, que marcava exatamente dez e meia da noite. Calcula quanto de percurso tinha feito e deduz que estava a ininterruptas seis horas na estrada. Ele simplesmente não via forças em continuar. O problema era que já estavam distantes da derradeira pousada que avistaram e ele não via vantagem em voltar tantos quilômetros.

Após uns minutos de resolução, Eustáquio decide encostar, entretanto, mais a frente, avista uma entrada na lateral direita da estrada. Com a ideia fixa zanzando em sua cabeça, acabou indo de encontro àquele abençoado esconderijo. Ele pretendia estacionar dentro da caatinga e descansar até sentir-se novamente disposto a dirigir. Ali, pensara, ninguém haveria de importuná-los.

A noite estava agradável, tendo a lua resplandecente iluminando borrões da mata até onde o horizonte alcançava. O céu límpido, tendo esporádicas nuvens que formavam desenhos surrealistas, era um convite a uma dormida tranquila.

Eustáquio, ao parar num ponto afastado daquela estrada de areia, baixa um pouco os vidros do carro e, decidido a relaxar profundamente, troca o estilo de música do aparelho de som. Agora se ouvia a inebriante e envolvente música new age da cantora Enya. A sua mulher não se incomodou, pois continuava dormindo apesar da mudança de ritmo do veículo.

“Ela nem vai saber que paramos”, e pensando nisto, Eustáquio se acomoda na poltrona. Contudo, antes que pudesse fechar os olhos, escuta um barulho esquisito, como se houvesse milhares de coisas acontecendo ao mesmo tempo. Parecia ruído de cidade em plena atividade, algo praticamente insensato de comparar, sabendo o exato local em que estavam. Simplesmente não podia existir uma metrópole ali.

Mas era o que Eustáquio ouvia. Custava a crer em tal pensamento, entretanto, era o que sua consciência lhe dizia.

Qualquer pessoa em seu juízo perfeito ficaria curiosa em saber do que se tratava. E foi exatamente o que tomou as ações do engenheiro. Saiu do carro com todo o cuidado e se dirigiu para onde estava o barulho.

Caminhou pela caatinga durante uns dez minutos até finalmente ver um alucinante show de luzes à frente. Não conseguiu evitar farpas dos mandacarus e o irritante contato com o cansanção. Ao chegar onde pretendia, coçava-se todo.

O cansaço que sentia sumira ao fitar o improvável.

Imagem retirada do site: http://liofreitas.blogspot.com/2010/12/cidade-maluca.html

 À primeira vista, poderia muito bem tratar-se de uma cidade planejada por algum alucinado cuja medicação não fora regulada. Contudo, para Eustáquio aquilo representava uma aglomeração de interessantes formas em locais sem nexo. Torres inclinadas eram ligadas por passarelas que lembravam redes armadas, tamanha flexibilidade perceptível; arcos eram rearranjados assim como uma montanha-russa, porém, não havia a lógica cíclica deste, pois se notava o término sem fundamento de muitos, que concluíam suas trajetórias em caminhos impossíveis de se seguir; balões flutuavam de lado, às vezes descendo e subindo, sem que houvesse alguém que os guiassem; mãos gigantescas brotavam do chão e tentavam agarrar aviões sem asas; chovia olhos atravessados por setas púrpuras; carros davam cambalhotas no mesmo lugar; cadeiras corriam em fila indiana e entravam num edifício em formato de interruptor; inúmeros fios, de todas as larguras imagináveis, interceptavam camas que emitiam energia eletrostática; enfim, uma profusão de absurdos.

O engenheiro fitou aquilo de boca aberta. Coçou os olhos com tanta força que parecia querer arrancá-los. Balançou a cabeça negativamente desde que seu cérebro percebeu a insanidade que aquilo representava. E ficou mais admirado ao perceber uma figura se aproximando tranquilamente dele.

Ele não pensou em fugir, pois queria saber mais sobre o espetáculo que se apresentava. E para Eustáquio, aquele ser que agora chegava poderia lhe explicar a razão de ter uma obra surreal à sua frente.

Era um robô, cujas pernas eram rodas de trator, mas seu tamanho não ultrapassava um metro e meio; seus braços curtos giravam no próprio eixo, como se forçassem o embalo de sua locomoção; seu rosto se resumia num grande globo ocular que focalizava no engenheiro. Sua voz metálica soou tão alta que Eustáquio preocupou-se com a possibilidade do barulho acordar sua esposa.

“Olá, senhor! É uma grande honra tê-lo como visita.”

“Por favor, poderia diminuir o volume da sua voz?”

O próximo som veio mais suave.

“Gostaríamos que nos desse o prazer de visitar nossa modesta cidade.”

Eustáquio entendia o que o robô dizia, mas não assimilava tamanha intimidade por parte deste. Contudo, apesar do contexto psicodélico em que se encontrava, tratou aquilo com naturalidade.

À medida que adentrava na cidade, mais abismado ficava o visitante pela desconformidade e bizarrice mostrada. Entretanto, por mais absurdo que pudesse parecer, as imagens que via não eram de todo desconhecidas para Eustáquio. Havia ali certa similitude a algo caro para ele. A nostalgia de um tempo não vivido tomou-lhe de súbito. Sabia do que se tratava, mas negava-se a acreditar.

E quanto mais observava mais detalhes, mais particularidades inerentes ele redescobria. Todo aquele complexo, nas suas mínimas minúcias fizeram Eustáquio derramar lágrimas.

“Não! Não pode ser!”

Ele se virou para o robô, que servia como guia, e enfaticamente negava o que via, e deseperado pediu:

“Deixe-me ir! Por favor!”

As súplicas de Eustáquio não provocaram qualquer comoção no robô, obviamente. Contudo, este não impediu que o engenheiro conseguisse realizar o seu desejo.


O carro começava a entrar no mato da contramão, indo de encontro a um vulto. Eustáquio não consegue desviar a tempo. O baque surdo faz com que ele “cante” pneu.

Odete acorda sobressaltada e se não fosse pelo cinto, com certeza teria batido a cabeça no vidro lateral.

Quando enfim freia, o odor característico de pneu queimado sobe ao olfato de ambos.

“Oh meu Deus! Meu Deus!”

Os gritos exasperados, porém breves, de Odete sobrepõem-se à respiração ofegante de Eustáquio.

Pouco a pouco, os dois se acalmam mutuamente. O pior não acontecera.
Eustáquio reúne forças e guia o carro para fora da pista.

“Vou ver o que atropelei. Espero não ser uma pessoa.”

As mãos trêmulas abrem a porta com dificuldade. O negrume da noite só não é total por causa dos faróis que, ainda acessos, iluminam o matagal próximo.

Odete vê pelo retrovisor a figura de seu marido aproximar-se de uma massa felpuda e, agachando-se, o engenheiro toca no ser. Levantando lentamente, ele observa ao redor. Depois, abaixa-se e puxa o animal para fora da estrada.

Ao regressar, Eustáquio dirige-se para frente do carro ao mesmo tempo em que diz:

“Era uma ovelha, Odete.”

Analisa o amassado do capô e verifica não se tratar de algo que os impeça de prosseguir viagem.

Não obstante a tranquilidade da cena, algo chama a atenção do engenheiro. Pequenos pontos escarlates aparecem na escuridão infinda, semelhantes a olhos injetados de sangue.

Assustado, Eustáquio retorna rapidamente para o automóvel. Sua mulher se espanta com a atitude brusca do marido. Ele balbucia algumas palavras, mas nada parecia fazer sentido para Odete até ela ver também os vultos felpudos de olhos vermelhos aproximando-se do carro devagar.

O carro não pega. Uma, duas, três tentativas e nada.

As sombras chegam cada vez mais perto. Mais perto.

A escuridão toma conta por completo. Os gritos humanos e o balançar violento do veículo são abafados por uma sonora sinfonia de béééés.

Eustáquio e Odete conheceram o clã das cabras suicidas.        
           

Iniciado em Junho/2010, continuado em Julho/2010, Concluído em Recife, 07/01/11

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O pedido de Deus.


Um ovo ordinário, de casca argêntea, está posicionado num espaço de brancura infinda. Caso algum observador se permitisse indagar o porquê dele estar em pé, se não há nada, pelo menos perceptível, que permita responder à questão; a verdade é que o ovo é a única coisa na qual dá para se tomar como referência de dimensão do lugar. O resto é apenas o puro e impenetrável branco.

Aproximando-se do ovo, pode-se notar uma pequena vibração advinda de si. Posicionando o olhar na sua superfície, vê-se uma fissura que de instante a instante aumenta e se divide. Os proeminentes caminhos desenham na casca formas ditadas pela lei do acaso. Isso sempre acompanhado do estralar surdo de algo quebrando. O ovo, cujo genitor não se avizinha ou mesmo não se sabe se existe, revelava sua cria.

Antes de despedaçar-se por completo, o ovo caí, ficando na horizontal, mostrando de relance detalhes do ser, que força a saída e faz com que seu local de germinação rolasse uns poucos centímetros até parar por completo e desfazer-se de vez.

“Banhado” por pedaços de cascas, que estavam em cima de seu diminuto corpo, a esquálida cobra, ainda um tanto assustada em nascer em lugar tão enigmático, procura uma explicação para o motivo de sua existência. Não que ela soubesse exatamente que pergunta fazer, pois nem isso ela sabia com clareza. Na verdade, somente o fascínio em estar ali, viva, fitando um “nada” branco e depois a si mesma e o resquício do seu nascedouro, já a enchia de júbilo e satisfação.

Mas, e depois? O que fazer após a constatação de sua existência? O que fazer primeiro?

“Coisas de cobra”, responderiam alguns. Contudo, esta criatura frágil e absurdamente lotada de perguntas a serem feitas não era uma mera cobra. Ela era “a” cobra. A primeira de todas. O fato de ter sido desenvolvida neste espaço foi, acreditem, um erro de cálculo calculado.

Ela deveria ter vindo juntamente com as outras criaturas num só momento, pela vontade bendita de Deus, que criara o mundo e preparava-se para o próximo passo: povoá-la. Entretanto, Deus precisava esclarecer alguns detalhes com a recém criada cobra. E isso devia ser particular.

Deus, apesar de seu poder ilimitado e inimaginável, preferiu personificar-se numa forma humanoide; primeiramente, translúcida, mas que logo foi preenchida por a matéria do próprio cosmo.

O pobre animal, cuja significação das coisas ainda lhe era desconhecida, não pode expressar o que via dentro daquele agente estranho à paisagem, assim como ela. Mas aquele estranho prostrado à sua frente, no momento em que aparecera, surgira como uma gradativa forma humanoide que foi se formando do nada, dando o mesmo efeito de ter aberto um buraco no ar alvo com seu negro formato. Dentro dele havia galáxias diminutas, estrelas exalando uma magnífica fosforescência e planetas exuberantes.

Enquanto Deus se aproximou da cobra, esta fitava admirada as constantes mutações que ocorreriam no corpo daquele. A cobra não podia conter um misto de temor e vislumbre.

“Não tenha medo, criatura”, a voz emitida por Deus parecia originada de todos os lugares possíveis. A cobra não sabia para onde dirigir a atenção.

Deus aproximou a sua mão, em cuja palma um sol pulsava, mas parou o movimento. Fitou a cobra – pelo menos era para onde seu rosto formado por infinitas estrelas apontava. Ele sabia que o animal não poderia falar, pelo menos até ele fazer um gesto. Automaticamente, a cobra pigarreou, confusa; e sons breves, para sua própria surpresa, eram libertados de seu interior. E o que era mais importante, ela entendia aquele ser e agora poderia conversar com ele.

“Assim está melhor”, disse Deus.

A cobra tinha muitas perguntas a fazer, mas antes que pudesse balbuciar, foi interrompida.

“Por um momento, peço que me ouça. Talvez responda algumas das suas inúmeras perguntas, mas primeiro deixe-me explicar por que fiz você vir antes de todos”, Deus fez uma pausa para a cobra assimilar aquilo que estava sendo transmitido. Vendo que entendera, ele continuou: “Estou prestes a fazer algo esplendoroso. Um plano ousado. E você fará um papel deveras importante. Talvez pergunte: ‘por que eu e não qualquer outro?’. Afeiçoei-me a sua figura simplesmente, não preciso de motivos. Agora, vou dizer-lhe o que pretendo fazer, por isso ouça-me atenciosamente.”

A cobra dispôs toda a sua energia nas palavras importantes.

“Sou seu criador. Assim como você, muitas outras espécies de animais virão compor um mundo que fiz, e que no momento está vazio de seres andantes. Eu pretendo participar disso, mas o homem que criarei a minha semelhança (ou mais precisamente, eu mesmo personificado), assim como a mulher que virá em seguida, retirada do homem para fazer-lhe companhia, e que não deixa de ser, assim como ele, uma parte de mim, não poderão sair do meu próprio mundo divinizado (estático) e criar, sentir e retornar para mim o processo maravilhoso da mudança, caso não quebrem a corrente. Essa será sua missão.”

A cobra, tímida, falou:

“Como farei isso? E se o senhor é o criador, por que simplesmente não opera da maneira certa, pelo menos da maneira que o senhor quer que aconteça?”

“Eu sou tudo. Sei como tudo é na TOTALIDADE. Não consigo vivenciar partículas. Tenho um plano geral de toda a história do homem neste planeta, mas não o saberia caso não viesse até você e pedisse esse favor.”

“Mas o senhor é meu criador, como pode se dar ao trabalho de pedir? Bastava incutir na minha cabeça tal pensamento e logo o faria sem pestanejar.”

“Ora, cobra. Que graça teria?”

Algo semelhante a um sorriso pareceu surgir em meio às estrelas, deformando-as.


Nota: A cobra soube o que fazer, cumprindo seu papel com êxito. E, além disso, foi o único animal que teve acesso a informações privilegiadas da “fonte”. O resto, como dizem, é história.

Teresina – 25-03-2010.

O Deus que mencionei neste conto se assemelha ao Eternidade, da Marvel Comics.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Bem-vindo!

Olá! Talvez você não me conheça e possivelmente eu também não te conheça, mas podemos consertar isso! 

A partir deste momento, exatamente agora, já, você poderá apreciar (ou repudiar, sei lá) os inúmeros textos que deixarei a disposição neste, que é sem dúvida, um espaço dedicado a obras que não me custaram "6 longos anos de minha vida" (ou quase isso) mas que, de uma forma ou de outra, ocuparam um tempo, no limbo, aguardando o instante em que finalmente fossem emergidos e dessem frutos (preferencialmente laranja).

Bem, no mais, espero que se divirtam lendo-os tanto quanto eu ao escrevê-los.

Um forte abraço!

ALMABANE


E só para quem não sabe, a inspiração do nome do blog veio desta cena: