Imagem extraída do site: http://www.observatoriodeseguranca.org/imprensa/tortura |
Um
ardor me desperta. Sinto gosto de sangue na boca e meu olho direito
está inchado.
Apenas
um relance me separou da inconsciência prazerosa para a realidade
dolorosa. Estou sentado, completamente nu, atado a uma cadeira de
metal num local imundo e obscuro. Aos poucos, inúmeras sensações
percorrem-me: o frio que sobe por minha perna acusa a presença de
uma bacia com água onde os meus pés estão submergidos; as cordas
bem enlaçadas ferem meus braços e pernas, além de provocarem
ardência e comichão.
Uma
pequena janela gradeada no alto, cujos raios solares revelavam uma
fina camada de poeira flutuando no ar, dava pistas da hora em que se
passa minha atual posição de sufoco.
Novamente,
não sei qual o meu objetivo ali e não faço ideia do porquê de
estar apanhando. Dois homens à minha frente resmungam numa língua
que me é alheia, mas pela quantidade de emes e eles, dou um palpite
de que é árabe. Também não era difícil perceber pela vestimenta
e etnia, contudo, esse detalhe óbvio só me foi apresentado após
forçar muito a minha vista mareada.
Então...
parece que estou sendo interrogado no final da contas.
Suponho
que agora seja um militar (ou apenas um civil azarado). Pela
tonalidade da pele, um norte-americano, talvez? O espancamento já
deve estar acontecendo há horas. Não sinto boa parte do corpo e a
outra parte ou formiga ou a cãibra impera.
Não
compreendo por que isso vem acontecendo comigo. De um fechar e abrir
de olhos mudo de naturalidade e situação. Um pavor incontrolável
toma conta de mim todas as vezes que sinto a consciência emergindo
das profundezas do sono sem sonhos.
Outro
tapa dado com as costas da mão cheia de anéis arranca pele,
lágrimas e mais sangue. Meu interrogador pragueja em seu idioma,
pela expressão mostra que sua paciência se esgotara. Tento amenizar
sua ira balançando a cabeça numa negativa suplicante, contudo, um
soco no meio do estômago demonstra meu erro.
O
fôlego custa voltar. Enquanto isso, o homem se afasta e retoma o
diálogo com o outro, que fica apenas me encarando com a mão no
queixo barbudo e esporadicamente respondia o companheiro.
Após
um tempo de grunhidos, parecia que haviam chegado a uma solução.
Com
um aceno, o homem que me fitava chamou outros dois companheiros que
estavam atrás de mim. Eles usaram de força desproporcional para me
tirarem dali. Ao ser arrastado para fora daquele lugar macabro
percebo uma mesa coberta de apetrechos de tortura, inclusive fios
desencapados conectados a um gerador portátil. O homem, que parecia
ser o líder, se dirige à minha pessoa, num sotaque carregado, antes
que eu atingisse o corredor:
“Você
terá melhor serventia como exemplo”.
Assim,
sou arrastado por um corredor de paredes deterioradas. No chão de
areia, o rastro dos meus dedos representava minha impotência.
Numa
sala contígua, trapos são jogados em cima de meu corpo, prostrado
no chão. Contudo, não tenho forças para me vestir.
Depois
de alguns minutos ali, imóvel e perdido em pensamentos apreensivos,
assusto-me com a entrada brusca dos mesmos guardas que haviam me
levado para aquela sala. Com brutalidade, ajudaram-me a colocar a
roupa como se eu fosse um boneco de pano. Em seguida, retiraram-me,
agora me deixando num lugar com câmeras de vídeo. Deus... eu ia ser
sacrificado!
Naquele
instante, o desespero tomou conta de mim. A inevitável aproximação
da morte fez-me resgatar forças adormecidas.
Por
não esperarem qualquer reação, os meus carcereiros não se
preocuparam em novamente me atar. Confiando simplesmente em suas
forças, com surpresa (beirando à pena de tão patético), um deles
se desequilibrou quando arranquei a metralhadora do outro e disparei
a esmo em todas as direções. Infelizmente muitos dos disparos
encontraram apenas a parede.
Mesmo
com dificuldade, me esgueirei para fora da sala. Estacionei sentado
no meio do corredor, esperando novos inimigos para atingir. Meu peito
ardia com o esforço. A vista gradativamente escurecia, porém, eu
não podia desperdiçar aquela chance. Mas eu estava tão cansado...
Ao
acordar, novamente com um tapa, me deparei com a cruel realidade.
Certificando-se
de que estava enfim desperto, o operador da câmera deu sinal para
que o discurso fanático começasse. Cinco homens, como estátuas encapuzadas,
pairavam ao meu redor. Um deles, mais à frente, lia o temível
ultimato.
Minhas
tentativas de manifestar-me foram sufocadas pelo trapo na boca.
Agitei-me quando percebi a aproximação imponente do meu carrasco.
Em sua mão, uma faca reluzente levemente encurvada. Meus gemidos
aceleraram enquanto as lágrimas caíam frenéticas.
O
metal gelado fez movimento de vai-e-vem e a dor que ela provocava no
contato de minha garganta se confundia com o sufocamento gerado em
decorrência do ato.
Por
fim, vi apenas luzes quadráticas levitando à minha frente e em seu
centro, uma pequena vermelha piscando.
Recife,
19 de agosto de 2012.